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O paisagista todos conhecem, mas quem conhece o mosaicista Roberto Burle Marx?
É raríssimo encontrar em livros ou mesmo na Internet fotos e comentários sobre as obras importantíssimas que Burle Marx produziu em forma de mosaicos ao longo de toda sua vida, especialmente painéis e murais construídos com pastilhas. Muitos dos que escrevem sobre o a obra do paisagista devem achar que isso o diminui. Uma pena que pensem assim. Mesmo para falar sobre sua obra mais vistosa no Brasil e no exterior – o mosaico-calçada de Copacabana – críticos e curadores são tímidos ao tecer considerações sobre o mais importante logotipo turístico de nosso país. Não sei se é por desconhecimento de suas implicações estéticas ou se decorre de uma hierarquização anacrônica das diversas habilitações artísticas do paisagista, tapeceiro, escultor, pintor, joalheiro e tantas outras especializações que deixam sua opção pela arte musiva entre as preferências obscuras do artista.
Ainda no início de 2009, o competente professor Lauro Cavalcanti, diretor do Museu do Paço Imperial, no Rio de Janeiro, organizou ali uma mostra vastíssima da obra de Burle Marx para celebrar o centenário de seu nascimento.
Remontou painéis em azulejos no pátio interno, pendurou tapeçarias enormes dentro das salas do Palácio, exibiu uma infinidade de obras originais, quadros, jóias, reproduções e projetos que ele realizou ao longo de sua vida rica em criatividade e genialidade. Mas, com relação aos trabalhos em mosaico, há apenas uma ou outra referência no roteiro cronológico de sua atividade, alguma vez empregando eufemismos para designar os painéis em pastilhas. Há referências, mas falta a obra, a foto, o testemunho estético. Fica evidente a existência de uma lacuna, que não consigo compreender pelo muito que guardo de admiração pela competência tanto de Burle Marx quanto do jovem e festejado diretor do Museu.
O mosaico do conjunto Pedregulho e suas consequências...
Conhecido como paisagista, Burle Marx foi também gravador, ceramista, desenhista, tapeceiro e, especialmente, mosaicista. Sua obra nesse campo é vasta e dotada de personalidade própria, abstracionista na maior parte. Um dos poucos redutos de pesquisa que vem fotografando e divulgando seus painéis – e de outros grandes ceramistas e azulejistas brasileiros - é o site “Cerâmica no Rio” (www.ceramicanorio.com.br), um nicho não-comercial da Internet que, aos poucos, vai mapeando o território nacional em busca do que é importante na arte muralista.
Nele tenho bebido água santa de boas fontes musivas, incluindo a que procede do painel realizado pelo paisagista para a Escola Municipal do Conjunto Pedregulho, no bairro de Benfica, subúrbio do Rio de Janeiro. O projeto do conjunto e da escola é do arquiteto Affonso Eduardo Reidy, expressão máxima do período modernista e autor do conhecido e reverenciado projeto arquitetônico do MAM Museu de Arte Moderna do Rio. O site em questão abriga referências a ceramistas de todo o país e é rico em atualizações e pesquisas caprichadas, que devem ser creditadas ao pesquisador Renato Wandeck.
Sobre o trabalho que Burle Marx realizou para o conjunto Pedregulho, vale destacar que se trata de um projeto integrado, concebido numa época em que os arquitetos modernistas achavam que a arquitetura poderia contribuir para a melhoria social das condições de vida das camadas mais desprotegidas. O que se fez ali, no bairro de Benfica, foi uma arquitetura de primeira grandeza, obra de concreto, poesia e sonho. Ao lado do prédio, com fachada em curva, foi construída uma escolinha tão pretensiosa que ganhou painel em azulejo de Portinari e outro painel em mosaico de Burle Marx, retratando as brincadeiras das crianças, gangorra, escorrega, jogo de bola, etc...
O sonho modernista não se concretizou. Uma série de equívocos, deturpações e dificuldades características das contradições da sociedade brasileira resultou numa inversão das expectativas e o edifício projetado por Reidy transformou-se num prédio de características quase tão perigosas quanto qualquer favela carioca. Mas é importante ressalvar que o mural de Portinari continua bem preservado na fachada da escola e o painel musivo de Burle Marx se mantém igualmente íntegro, embora tenha passado, recentemente, por uma pequena restauração para substituir algumas pastilhas caídas, já que, por se encontrar no interior da escola, sofre danos eventuais das brincadeiras das crianças no horário de recreio.
Lygia Clark realizou este painel no período em que trabalhava com Burle Marx
Pouca gente sabe, mas a artista Lygia Clark, antes de se tornar a grande musa da arte concretista, trabalhou a partir de 1947 com o paisagista Roberto Burle Marx, tendo permanecido ao seu lado por quase quatro anos, quando viajou para Paris.
Para quem também não sabe, revelo aqui: Lygia concebeu e executou um painel em mosaico na fachada externa de entrada de um prédio na Atlântica em 1951, no período em que ainda trabalhava com o paisagista. Quem quiser apreciá-lo no local, basta chegar até a esquina da avenida com Júlio de Castilho. O mais interessante na apreciação será cotejá-lo com a obra de Burle Marx, realizada um ano antes para o Conjunto Pedregulho. Ambas exibem traços curvos, figurativos, muito semelhantes. E ainda mais: as pastilhas empregadas pelos dois artistas possuem a mesma tonalidade, talvez até correspondam, no caso, a sobras de um projeto utilizadas pelo outro. A obra de Lygia está assinada: Lygia Clark, 1951.
Enfim, a influência de Burle Marx nesse caso é evidente. Lygia estava apenas iniciando sua carreira, que iria tomar novos e revolucionários caminhos dali para frente, quando ela partiu para a Europa ao final de 51, passando a estudar em Paris, com Arpad Szènes, Dobrinsky e Fernand Léger (este também um notável mosaicista). Ao retornar, abraçou a corrente concretista, defendida por Ferreira Gullar, e se juntou a Hélio Oiticica, operando uma verdadeira revolução nas artes plásticas a partir de então.
O mosaico-calçada em Copacabana: logotipo internacional
Em outro espaço aqui deste site comentei a obra de Burle Marx para o bairro de Copacabana, que inclui a preservação das ondas em pedra portuguesa junto à orla. O paisagista refez os desenhos originais dos calceteiros portugueses, realçou sua sensualidade na medida da ampliação do calçamento e manteve o paralelismo com as ondas do mar, que fora implantado na reforma de 1929 pelos calceteiros já habilitados no Brasil. No canteiro central da Avenida e no piso junto aos edifícios, Burle Marx aplicou novos desenhos de sua pletora criativa, com pedras pretas e vermelhas (basalto) e brancas (calcáreo).
É surpreendente esse interesse pelo mosaico-calçada, que o ocupa em boa parte de sua vida. Ele nunca deixou de realizar projetos para mosaico, sobretudo para os pisos de pedra portuguesa que conjugam bem com sua obra paisagística. Um dos bons exemplos deste uso é a obra em mosaicos de pedra portuguesa que decora o piso e até as paredes do Edifício Parque Cultural Paulista, em S. Paulo.
No painel para o saguão de entrada do Hospital Souza Aguiar, Burle Marx inovou mais uma vez no uso das pedras portuguesas, verticalizando seu uso e associando a outras pedras coloridas, notadamente quartzo verde e quartzo rosa.
A verticalização das pedras portuguesas
E há também uma obra prosaica realizada em 1966 para o saguão de entrada do Hospital Souza Aguiar, no Rio de Janeiro: um painel em mosaico mesclando pedras portuguesas com pedras semi-preciosas. O arquiteto responsável pela construção do Hospital foi Ary Garcia Roza.
No projeto do Parque Cultural Paulista, o que se vê são nichos em pedras portuguesas que sobem a empena do prédio formando sacadas para abrigar plantas suspensas, junto às paredes. Nesse caso, Burle Marx explorou as possibilidades da volumetria das pedras, em vez de montá-las chapadas ou planas, como ocorre no revestimento das calçadas.
Essa mesma opção por níveis diferentes de volumes para as pedras portuguesas, o artista empregou na Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, na parede externa do Banco Safra (próximo à esquina com a rua Buenos Aires). Ali, Burle Marx dá um verdadeiro show de sofisticação e genialidade, exibindo o seu gênio criativo na exploração do espaço vertical. Infelizmente, nos últimos anos, uma floricultura invadiu a área e ainda a envolveu em grades escondendo a visibilidade da obra. Uma vergonha. A Prefeitura do Rio de Janeiro não toma qualquer providência há anos.
Entre os painéis em mosaico de pastilhas, há que relatar o que produziu para o Museu de Arte de São Paulo, o Masp, na Avenida Paulista, e também os que ornam a residência dos irmãos Gomes, em Ubatuba, ambos descritos na cronologia de obras divulgada pela mostra do centenário de Burle Marx no Paço Imperial.
No Edifício Parque Cultural Paulista, Burle Marx moldou um novo padrão estético para as pedras portuguesas, subindo as paredes em volumes diferenciados e formando nichos para abrigar plantas. (na foto abaixo)
Mosaicos em pastilhas até o final da vida
A opção pelo mosaico é constante em toda sua trajetória, ocorrendo a partir dos anos 50, quando realiza três murais para a Companhia de Fiação e Tecelagem Paraíba, em São José dos Campos, a convite dos arquitetos Rino Lévi e Carlos Millan. Esses murais – sendo um em azulejo e dois em pastilhas vítreas da Vidrotil, encontram-se distribuídos entre o interior e a área externa da residência do antigo proprietário do empreendimento, Olivo Gomes. A empresa começou próspera e cresceu depressa nas décadas de 50 e 60, mas a falta de modernização dos equipamentos e os rumos desencontrados da economia nos anos 80 levaram-na a um impasse que resultou no seu processo falimentar, iniciado em 1993.
O Município e o Estado associaram-se para salvar parte do patrimônio histórico e cultural da área pertencente à empresa e abri-la ao uso da população. Foi criado no local o Parque Burle Marx, uma das áreas mais acolhedoras de S. José dos Campos. Mas ainda está faltando a participação federal, que deveria vir do Instituto do Patrimônio Histórico Artístico e Cultural (IPHAN) para iniciar um processo de tombamento das obras e bens de valor cultural. Entre esses bens, sem qualquer dúvida, encontram-se os painéis musivos de Burle Marx.
Apesar das aventuras majestosas no espaço estético do mosaico-calçada com pedras portuguesas, foi o uso das pastilhas vítreas que o embalou até o final da vida. Em 1994, Roberto Burle Marx foi chamado para revestir a fachada do Hotel Castelli della Alzer, perto de Montecchio Maggiore, em Vicenza, na Itália. Foi sua última obra. Morreu em junho daquele ano, aos 84 anos de vida. Na execução, foram empregadas pastilhas Bisazza, produzidas no mercado italiano e que vêm entrando aos pouquinhos na disputa pelo mercado brasileiro, controlado com competência pela empresa Vidrotil desde 1947. Sobre esta obra, não vi referência na mostra do Centenário.
Haruyoshi Ono, parceiro, amigo, herdeiro e... mosaicista
Apesar de não ter deixado herdeiros sanguíneos, Burle Marx estabeleceu uma relação de parceria tão forte com seu discípulo Haruyoshi Ono, a partir da segunda metade dos anos 60, que este acabou se tornando um herdeiro natural, que vem se dedicando com competência e afinco à tarefa de preservar a memória do mestre e de levar adiante projetos de envergadura e de inovação.
Haruyoshi Ono formou-se em Arquitetura no Rio de Janeiro em 1968, mas já em 1965 começou a trabalhar com o paisagista na condição de estagiário. Cresceu de tal forma dentro da empresa que, passou de aprendiz a sócio ao longo de quatro décadas de trabalho em conjunto com Burle Marx. Após o falecimento do mestre, tornou-se o titular do escritório.
Depois da morte a Burle Marx, Haru vem dando continuidade tanto a obras de recuperação, como a que procedeu no Parque do Flamengo, no Rio, como em outros de sua total responsabilidade e iniciativa, como o parque ao redor da Lagoa Rodrigo de Freitas. Também tem atendido obras no exterior, notadamente na Itália e em Israel. E, assim como Burle Marx, também se interessou pela arte do mosaico, sendo de sua autoria um grande painel de formas geométricas que abriga uma fonte, num shopping center da Barra da Tijuca. Uma beleza.
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